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26/08/2019 - 14:28

Sonhar ainda é possível?

O Fim da Utopia (Ed. Record), livro do professor de história e educação da Universidade da Califórnia, Russell Jacoby,  diz  que ninguém vai querer viver sem utopias: “Penso que é importante manter-se compromissado com a idéia de que o futuro pode ser melhor e diferente. Abandonar isso acaba afetando a vida em todos os aspectos.” (p. 3.) Dentro de cada um de nós há pelo menos uma vaga esperança de um mundo novo. Não importa se somos ignorantes ou letrados, pobres ou ricos, pagãos ou cristãos. O fenômeno é tão antigo quanto a mais antiga civilização. Até Karl Marx, que tentou destruir a religião, chamando-a de “o ópio do povo”, dizia que a história caminha para a remissão do homem de todas as injustiças, mazelas e desigualdades. Embora por vias totalmente opostas, o cristão também nutre essa visão escatológica, que termina com “novos céus e nova terra” (2 Pe 3.13, NVI). Muito antes de Cristo, os chamados pagãos tinham uma coleção de mitos que anunciavam profundas mudanças escatológicas. Na mitologia romana, Anquises, aquele pastor de Tróia que se casou com a deusa Vênus, explicava ao filho Enéias: “A maioria das almas anseia, mais cedo ou mais tarde, pelo céu aberto, e vêm para beber o esquecimento e nascer outra vez”. Os indígenas brasileiros alimentavam a esperança de “uma terra sem males”. Hoje, os esotéricos alimentam a esperança de “uma era de ouro”, a era de Aquário, quando desaparecerão a fome global, a ameaça de guerra nuclear, a destruição do meio ambiente, a Aids, a criminalidade etc. Ou seja, a utopia de um mundo melhor não é uma vã esperança, mas uma expectativa real, embora não se realize facilmente, o demonstra história dos povos; exigindo lutas, reveses e vitórias. Como diz Millor Fernandes, “o  homem é o único animal que tem a frescura de querer saber de onde vem, para onde vai e o que é que é”. Podemos acrescentar que só existe um homem perdido: aquele que perdeu a esperança. A revista Época fez a pergunta “Para onde caminha a humanidade?” à professora de filosofia política da USP Olgária Matos e obteve a seguinte resposta: “Para a utopia dos vales, onde corre o leite, o mel, ou para a barbárie, para a emancipação de todos os sentidos, ou para a destruição do homem pelo homem”. Mesmo que estejamos caminhando para “a destruição do homem pelo homem”, mesmo que experimentemos uma catástrofe mundial, mesmo que o nosso planeta seja incendiado (de acordo com Pedro) — “nós, porém, segundo a promessa de Deus, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça” (2 Pe 3.13, diz ela. Na cultura ocidental- judaica/cristã, a humanidade caminha para um mundo novo. Mas não será por meio da evolução, das reencarnações, das religiões, da globalização, da guerra, do terrorismo, do pacifismo, da falida ONU, do nirvana nem do esforço humano. Será somente pela intervenção de um Ser superior. Mas, enquanto isso não acontece, cabe a nós, humanos, sonhar com “os pés no chão”, ou seja, criar as condições para essa utopia de um mundo melhor, quem sabe sem guerras, violências, fome, ou minoradas esses fatos pela ação racional e consciente de todos nós- governantes e governados. A situação brasileira- política, social, econômica, não está fácil, mas  não se resolverá num passe de mágica; mas, sim, com a ação consciente de todos nós, agindo como atores da história e não, como meros coadjuvantes desse filme ou meros figurantes.  Em outras palavras, fazendo uma  leitura crítica da realidade e agindo, cada qual no seu campo de ação: estudante, trabalhador, dona de casa, autoridades e políticos. Não existe salvador  da pátria. Existem enganadores se passando por tais. Cabe-nos conhecê-los e denuncia-los, e o voto não vendido ou trocado  por favor, é um dos caminhos possíveis para superar esse estado de coisas. Marx dizia que cabe-nos transformar a história. Nós, brasileiros, adoramos ser paparicados, embalados nas vãs promessas de super-heróis, cujo fim conhecemos: decepção, engano, corrupção e cadeia (ainda bem) para muitos deles, e impunidade para outros, com processos que se eternizam até  a prescrição, como vemos diariamente. Esse comportamento de manada, de ovelhas indefesas tem que mudar. Ou seja, não adianta esperar eternamente soluções de terceiros, mas agir construindo-as. Utopia não é simplesmente, como diz a etimologia da palavra, “  um não lugar”, mas, um lugar que pode ser alcançado, realizável. Numa conferência sobre Ouvidoria que participei, foi levantada pelo debatedor a questão de se saber se o Brasil, hoje, tem jeito ou saída para a grave crise que vivemos- política, ética, moral, financeira. Conclusão do plenário: com certeza. Porém, falta vontade política e participação mais efetiva da população no processo de conduzir os rumos da nação. Historicamente, o brasileiro é alheio às decisões das elites políticas. Estas governam não para o povo, mas para si próprias, atendendo também pressões de grupos organizados e poderosos – como as grandes corporações econômicas e financeiras e os grandes conglomerados de comunicação.  Nós temos tudo para sermos um país de sucesso, pois temos um alto nível de empreendedorismo. Temos uma classe média que, apesar de alheia à política, suporta um ônus tributário em torno de 40% de sua renda sem a correspondente contrapartida de qualidade nos serviços públicos, e mesmo assim investe no futuro, especialmente na educação de seus filhos. Temos uma democracia que, apesar dos excessos ideológicos, pelo menos permite razoável estabilidade econômica para o crescimento. Temos o povo mais criativo do mundo mas, também, um dos mais alheios às questões públicas. Temos pessoas como você e eu, que não se conformam apenas em “levar a vida, alienado da realidade” e investem tempo lendo, escrevendo, participando de entidades, associações e trabalho voluntário, apoiando o futuro de milhões de crianças com suas doações e boa-vontade.  O Brasil tem jeito, sim. Desde que nós paremos de buscar soluções nas formas erradas (como assistencialismo) e deixemos nossa omissão de opinar e exigir mudanças junto à classe política. A solução para o Brasil está em nós, o povo- empreendedores, trabalhadores, classe média, enfim, todos cidadãos úteis, não nas elites políticas e econômicas. A população, perplexa e apática, não vê formas para coibir a roubalheira. As leis brasileiras não são severas, não punem com rigor e deixam espaços para que as pessoas roubem e pratiquem diversos outros crimes que ficam sem punição. A justiça no Brasil é lenta e o governo atende a interesses de corporações. Por isso que, ainda assim, sou sonhador e utópico. Chegaremos lá, com trabalho, educação e garra. (*) Auremácio Carvalho é advogado.

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